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"A última noite de Amadeo Souza-Cardoso sobre a Terra foi a tremer", histórias de Amadeo.

Escrito em 21 de maio de 2020

"A última noite de Amadeo Souza-Cardoso sobre a Terra foi a tremer", histórias de Amadeo.

Aflito, a suar cansaços e sufocação, muito pálido de pele, a cabeça a detonar, os lábios a azular, Amadeo, que ardia em febre e sentia arrepiado por todo o corpo o latejar da sua pulsação, como se o coração escalasse até à cabeça a bater, tossiu e novamente viu-se sangue vermelho-escuro e espesso nas suas mãos. Estava na cama do quarto do mirante, onde pintava, na casa de férias da família Souza-Cardoso, na Avenida Serpa Pinto, hoje Avenida 8, em Espinho, perto da brisa do mar. Mas o quarto penumbrava na doença, ele quase não conseguia respirar - dois dias antes, foi-lhe descoberta uma broncopneumonia gripal severa - e quis chamar um padre. E o padre veio ao alvorecer.

"Foi o derradeiro pedido de Amadeo de Souza-Cardoso, receber os últimos sacramentos", conta ao JN Luís Damásio, historiador e autor do livro-tese "Amadeo, vida, obra", lançado em 2018 nos 100 anos da morte do nosso maior pintor modernista. O padre veio, o dia nascia, rezou-se a santa unção, e os pulmões de Amadeo, a demolirem-se por dentro, amortalhados e sugados, implodiram e ele morreu às 9 horas da manhã de 25 de outubro de 1918. Tinha 30 anos, morreu a 20 dias de completar 31.

"Morreu de gripe espanhola, a gripe do influenzavirus H1N1 que foi a primeira pandemia dessa estirpe no século XX [a segunda foi em 2009] que matou entre 50 a 100 milhões de pessoas entre 1918, no fim da I Guerra, quando o vírus começou a espalhar-se com o regresso dos soldados às suas casas, até ao final de 1920", diz Luís Damásio. "Em Portugal, morreram entre 60 e 120 mil pessoas, muitos jovens como Amadeo ou os dois pastorinhos de Fátima, Francisco, com 11 anos, e Jacinta, que tinha 10. Foi fatídico, essa pandemia, que ficou conhecida como "a pneumónica", atacou e matou muito mais os jovens do que idosos, foi ao contrário do que é agora com o coronavírus e a doença respiratória covid-19". Continua o historiador: "É uma época fascinante nos relatos do Dr. Ricardo Jorge, o médico do Porto que lançou então o conceito de saúde pública, e há muitos paralelos com a pandemia mundial de hoje: o pânico geral, o isolamento, o distanciamento social, as tentativas de higienização, foi tudo muito parecido com o que vivemos agora, a diferença maior é que hoje, mais de 100 anos depois, dispomos de mais e melhor informação", anota o historiador.

Caixão seguiu lacrado para Manhufe
Amadeo fez parte da jovem geração que foi duplamente sacrificada: uns morreram em batalha - Amadeo não: quando foi chamado ao serviço militar da pátria, em 1916, quando Portugal entra na Guerra por pressão dos aliados ingleses, fez a inspeção no Quartel de Vila Real mas foi dado como inapto por falta geral de robustez -, outros caíram pela pneumónica, espantados com a velocidade e a impetuosidade viral.

O pintor foi levado na segunda vaga da infeção mundial, a mais gravosa, que durou de setembro a novembro de 1918 e que nesse período, espalhando-se a uma velocidade alucinante, matou cerca de 90% das pessoas afetadas pela pandemia - em Espinho a média foi terrível, morreu pelo menos um jovem por dia no negro mês de outubro, incluindo Amadeo.

"O funeral do nosso amado Amadeo foi muito restrito e silencioso, nem uma dúzia de pessoas da família, e o caixão, que já nos chegou já lacrado de Espinho para evitar infeções e disseminação, foi trasladado para o jazigo da nossa família em Mancelos [freguesia de Amarante]", diz agora António Sousa Cardoso, sobrinho-bisneto do pintor. "Na casa de Espinho, juntamente com Amadeo nesse mês de Outubro, encontravam-se muitos familiares: os pais dele, Emília Cândida e José Emygdio, a sua mulher Lúcie e as irmãs, Maria da Graça e Helena; também coabitavam essa mesma casa de Espinho empregadas domésticas que apoiavam nos diversos serviços da lide da casa".

Com Amadeo, foram-se outros familiares: "Não perdemos só o Amadeo; morreu também a irmã dele Maria da Graça, a avó, um tio e um primo e ainda uma empregada que era como família para nós", completa o sobrinho-bisneto António Sousa Cardoso.

A morte no cume do criador
Ceifado no pico artístico dos seus poderes, mais conhecido então no mundo do que por cá, Amadeo de Souza-Cardoso fez-se artista maior em Paris, onde chegou com 20 anos de idade e onde morou de 1907 a 1914, passando por várias casas e ateliers, mormente Montparnasse, o fervente bairro artístico por onde se entranhava o vórtice da revolução das artes que no início do século XX nos deu, como numa sísmica e verdadeira rebelião, correntes de pintura que marcaram o mundo como ferros em brasa desde então: impressionismo, cubismo, abstracionismo, futurismo, modernismo. A pintura, que explodia em revolvimento e ebulição em todas as direções, não terá sido alheia à convivência com o cinema, que na altura já espantava Paris com a sua projeção - o cinematógrafo de Thomas Edison já tinha sido inventado em 1891 e no final de 1895 os irmãos Louis e Auguste Lumière realizaram a primeira projeção cinematográfica no Salão Indiano do Grand Café do Boulevard des Capucines, pasmando filas e quilómetros de novos espectadores.

Amadeo, devorador de todas as novidades, assume-se como uma nova síntese de tudo o que na pintura é moderno, isto é, novo, rompendo a fixidez do naturalismo com cores a gritar, com movimento ou impressão de movimento, novos enquadramentos incomuns, talhando nos seus quadros as suas emotivas e excitadas perceções pessoais.

"Apresentar Amadeo Souza-Cardoso na sua pluralidade", retorna o historiador Luís Damásio, "é, com toda a justiça, equipará-lo com os maiores do seu tempo e ele conheceu pessoalmente muitos deles: Picasso (de quem curiosamente não gostava, era uma questão de feitios), Braque, Kandinsky, Chagal, Mondigliani, Brancusi, Delaunay, Matisse e muitos mais. Amadeo é o único artista português a atingir esse patamar".

Com a primeira exposição realizada em 1911, no seu atelier da Rue Ernest Cresson, n.º 20, quando tinha somente 24 anos, exibem-se os seus quadros vibrantes e esculturas longilíneas de Mondigliani, que conhecera e de quem se fizera amigo e que se chamava Amedeo. Mas é numa exposição na América, a rompante "International exhibition of modern art", o célebre Armory Show de Nova Iorque, em 1913, que o mostra ao mundo, exibindo ao lado de Picasso, Van Gogh, Monet, Manet, Cézanne, Renoir, Brancusi, Zak ou Gaugin.


"Acabei uma taboíta que me parece de bastante interesse uma procissão em S. Gonçalo de Amarante. As cores são muito vivas mas tudo está em relação”
(Carta de Amadeo à sua mulher Lucie, 1913)


            
Lúcia fotografada e pintada por Amadeo FCG/BIBLIOTECA DE ARTES/ESPÓLIO ASC.


Amadeo conheceu-a em 1908. Segundo contou Domingos Rebelo, foi Manuel Jardim que referiu a Emmerico Nunes a «crèmerie» do Boulevard Montparnasse e a filha da proprietária, «muito engraçada, que atende os clientes e fala também português». «Olhe que é bonita, é tímida, e muito simpática».
Tinha 17-18 anos. Amadeo apareceu «com a sua indumentária exótica - chapéu à Masantini, capa à espanhola, atirada sobre o ombro, deixando aparecer o veludo vermelho da gola; calça à boca de sino, polainas claras sobre um sapato castanho, luvas brancas», segundo o mesmo testemunho.
O encontro foi para a vida toda (mas muito diferentes as duas), primeiro ocultado da família conservadora de Manhufe, e depois formalizado no Porto, quando o pintor ficou retido em Portugal no início da Grande Guerra. As fotografias confirmam-lhe a beleza e as cartas que Amadeo lhe escreveu durante as vindas a casa sugerem uma cumplicidade inteligente.







Fonte texto integral: JN, José Miguel Gaspar, 21 Maio 2020
MUSEU MUNICIPAL AMADEO DE SOUZA-CARDOSO
Blog de Alexandre Pomar 01/09/2008